Corte IDH julga pela primeira vez caso sobre direito ao aborto

Caso é sobre jovem de El Salvador que foi impedida de interromper gravidez de alto risco de feto anencéfalo

Sessão da Corte IDH 

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) se posicionará, pela primeira vez na sua história, sobre o direito ao aborto, ao julgar caso de uma jovem com saúde fragilizada impedida de interromper uma gravidez de alto risco de um feto anencéfalo (sem cérebro), em El Salvador.

A mulher, tratada no tribunal pelo nome fictício de Beatriz, vivia em condição de extrema pobreza em Jiquilisco, uma cidade costeira no sul do país, quando engravidou pela segunda vez, aos 20 anos, em 2013.

Dois anos antes, ao dar à luz seu primeiro filho, ela foi diagnosticada com lúpus eritematoso sistêmico, nefropatia lúpica e artrite reumatoide – doenças inflamatórias que causaram complicações graves a ela e ao bebê.

Nesta primeira gravidez, Beatriz precisou ser internada duas vezes por causa de reações à anestesia necessária para a cesariana. Ela teve anemia e agravamento dos sintomas do lúpus, como inchaço no corpo e mau funcionamento dos rins. O filho nasceu prematuro, abaixo do peso, e passou dias em uma incubadora para reversão de um estado considerado crítico. Ele sobreviveu.

Beatriz descobriu a segunda gravidez de supetão, quando, envolta em dores ininterruptas e feridas por todo o corpo, foi levada pela mãe a um hospital de Jiquilisco.

“Seu corpo estava apodrecendo, praticamente. Ela sentia muita dor, até que um dia a levei a um hospital, fizeram um teste e descobriram que ela estava grávida. Ela foi transferida para uma maternidade, onde diagnosticaram que ela teria uma filha, que não poderia nascer porque não tinha cérebro. O estado era muito delicado. Os médicos imediatamente disseram que a vida dela estava em risco”, narrou a mãe em audiência pública realizada na sede da Corte IDH, na Costa Rica, entre os dias 22 e 23 de março. Por segurança, ela também não expôs seu nome.

Após novos exames e análises clínicas no hospital, a jovem tomou uma decisão. “Beatriz me ligou e disse que os médicos tinham dito que ela não poderia seguir com a gravidez, porque a vida de ambas estava em perigo, mas que havia uma possibilidade de Beatriz se salvar: um tratamento que eles não podiam fazer. Ela me perguntou o que eu achava, eu disse: eu te apoio com o que você quiser fazer. Ela então me disse que tinha tomado uma decisão, que queria interromper a gravidez para salvar sua vida”, disse a mãe.

Os médicos, então, formaram um comitê de 15 profissionais – incluindo diretor médico, assessor jurídico e obstetras – para tentar viabilizar o aborto. Eles produziram um documento técnico e enviaram a órgãos como Ministério Público e Ministério da Saúde na tentativa de seguir com o procedimento, mas não obtiveram resposta.

Ao mesmo tempo, a família da jovem tentou a liberação da Justiça, mas os julgadores consideraram o pedido “inadmissível” porque não enxergaram risco comprovado à vida e à saúde da gestante.

“Ela se sentiu desesperada quando negaram a interrupção da gravidez. Ela se sentia muito mal e dizia que não queria mais estar aqui. Dizia que, se soubesse que o bebê sobreviveria, ela se sacrificaria, mas não havia nenhuma chance. Os exames mostravam que era impossível. Se havia um tratamento, porque deixavam ela viver essa tortura?”, indagou a mãe na audiência.

Sem direito ao aborto, a mulher foi submetida a uma cesariana de emergência apenas na 26ª semana de gestação (uma gravidez completa tem 40 semanas, em média). O feto morreu cinco horas depois e ela sobreviveu com sequelas emocionais severas, conforme laudos psiquiátricos realizados posteriormente.

Beatriz morreu em 2017, devido a complicações de um acidente de trânsito aliadas a negligência médica, segundo a mãe dela. “O Estado falhou duas vezes com a minha filha. Ela teve um acidente quando se deslocava para o hospital para fazer exames. Não era um acidente para que ela pudesse morrer. Ela só teve uma pancada no rosto. Quando chegou ao hospital, foi internada por um dia. À noite, houve um temporal e o hospital inundou. Ela foi levada para outro hospital. Quando chegamos, a médica que a recebeu não sabia o que era lúpus. Eu disse: ‘Como você não sabe o que é? Você é médica!’. Foi quando concederam alta, porque disseram que ela não tinha nenhuma complicação”.

Beatriz voltou ao hospital um dia após ser liberada, tossindo sangue, afirmou a mãe. Ela foi diagnosticada com pneumonia aguda e não resistiu.

Guillermo Antonio Ortiz, obstetra que atendeu Beatriz, disse na audiência que fez de tudo para que a gravidez fosse interrompida, porque o risco à vida da paciente era de fato muito alto. Ele narrou que, mesmo após demonstrar o perigo cientificamente, foi aconselhado pelo advogado do hospital a não seguir com o aborto, ao que obedeceu por medo de ser preso.

“Como médicos, nós nos formamos e nos especializamos para identificar os riscos e prevenir os danos, por meio de conhecimento, da habilidade e juntando peças para evitar consequências severas à mulher. Em alguns casos, isso pode ser manejado de alguma forma para que o recém-nascido seja o mais saudável possível. Mas, neste caso, a situação era que não mudaríamos a situação do recém-nascido, porque, desde que se formou, ele estava destinado a falecer. O que nos restava era cuidar da saúde da mãe, e isso não pudemos fazer. Era o conflito de ter a capacidade técnica de poder fazer algo, mas não poder fazer e, consequentemente, levar uma mulher a uma situação extrema de sofrimento. Vê-la sofrer como sofreu me doeu muito”.

Ortiz disse que sofreu represálias por sugerir a intervenção. “Vivi uma situação bastante difícil de ataques, de estigmatização, inclusive à minha família, por oferecer um tratamento a uma jovem que teria que recebê-lo de qualquer maneira. Isso me estigmatizou e passaram e me tirar de chefias, a propor outros cargos. Foi muito duro, uma situação muito difícil”.

O médico defendeu a criação de protocolos médicos para abortos em casos de risco às gestantes. “É preciso ter protocolos que estejam baseados em evidências científicas e que permitam que mulheres nesta situação de risco de saúde de vida possam ter uma opção mais. Não uma obrigação, mas um poder dentro das ofertas terapêuticas para interromper a gravidez quando isso for uma decisão autônoma. Isso salvaria muitas mulheres.”

Impacto no direito das mulheres
Representante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a comissária Julissa Mantilla Falcón pediu a condenação de El Salvador por violações aos direitos à vida, à integridade pessoal, às garantias judiciais, à vida privada e à saúde em prejuízo de Beatriz. Ela ressaltou que o caso será um marco em relação aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres do continente.

“Este caso envolve questões de ordem pública interamericana. Será o primeiro em que a honorável Corte poderá se pronunciar sobre a convencionalidade da proibição absoluta da interrupção voluntária da gravidez, em particular em casos de risco para saúde, vida e integridade da mulher e quando existe uma inviabilidade do feto. Desse modo, a Corte poderá analisar, a partir de uma perspectiva interseccional, o impacto de tal criminalização, particularmente em mulheres jovens em situação de pobreza, assim como desenvolver standards em matéria de acesso à justiça”.

Irma Lima, integrante do Coletivo Feminista pelo Desenvolvimento Local de El Salvador e representante da vítima, disse que o Estado salvadorenho teve a intenção de causar sofrimento a Beatriz. Ela pediu, como medidas de reparação, que a Corte ordene que El Salvador compense integralmente a família da jovem, que anule punições em casos de aborto com risco às gestantes, que o país adote leis e políticas públicas que garantam o acesso ao aborto legal e que sejam desenvolvidos programas de educação e capacitação aos profissionais de saúde para lidar com situações parecidas.

“Hoje, mulheres como Beatriz só têm duas alternativas em El Salvador: a prisão ou o cemitério. A família dela está há dez anos esperando uma reparação justa e ainda não cansou de repetir o pedido primordial de Beatriz: que nenhuma outra mulher tenha que sofrer a crueldade, a incerteza e a tortura que ela viveu”, declarou a defensora.

Juana Acosta, representante do Estado, pediu a absolvição de El Salvador e alegou que não cabe a um tribunal internacional o papel de decidir sobre o direito ao aborto.

“Para além das complexidades do caso, sabemos que a Comissão e os representantes estão pedindo à Corte que assuma um papel decisivo, ou seja, que afirmem que a Convenção exige aos Estados uma única forma possível de balanço entre os direitos das mulheres e os dos seres humanos que estão por nascer. O problema é que, ao fazê-lo, não só se pretende eliminar a um dos lados dessa balança, mas dar a um tribunal internacional um papel que não lhe cabe”, argumentou.

Segundo Acosta, uma possível decisão favorável ao direito ao aborto seria contraditória e impediria o direito à vida dos fetos.

“O Estado confia que a Corte resolverá este caso salvaguardando uma interpretação que proteja um dos pilares mais centrais da Convenção, isto é, o reconhecimento de que os Estados outorgaram explicitamente a proteção à vida desde o momento da concepção, protegendo crianças que não nasceram, como sujeitos de direitos, de qualquer ato que cause sua morte ou destruição”, disse ela. Nenhum tratado de direitos humanos aplicável aos Estados do continente estabelece expressamente que os Estados estão obrigados a adotar um modelo de política criminal específico em relação ao aborto. A interpretação evolutiva não pode ser construída em contradição com os direitos que já estão reconhecidos no tratado”, completou.

A partir da realização da audiência pública, o Estado, representantes das vítimas e a CIDH têm um mês para apresentarem as alegações finais por escrito. Depois disso, a Corte IDH poderá emitir sentença a qualquer momento.

Participam do julgamento os juízes Ricardo César Pérez Manrique (presidente, Uruguai), Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia), Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México), Nancy Hernández López (Costa Rica), Verónica Gómez (Argentina), Patricia Pérez Goldberg (Chile) e Rodrigo Mudrovitsch (Brasil).

By Revista Jus

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